terça-feira, outubro 11, 2005

VERDE
Nuno era daltónico… não via a cor verde
Quando olhava para essa cor tinha dificuldade em definir o seu tom… ás vezes parecia-lhe azul, outras cinzento ou amarelo, ou até mesmo castanho!
Por vezes dizia aos outros o que via. Apontava para um tom e dizia que era azul. Ninguém acreditava… pior, ninguém percebia… mais grave, criticavam-no…
Chegaram a dizer-lhe que ele estava errado, que ele queria ter sempre razão, que ele não queria ver a realidade e que se escondia atrás do faz-de-conta…
Não era verdade.
Nuno começou a afastar-se das pessoas… cada vez mais… Percebia, com mais crueldade, que o mundo não tinha lugar para ele… não era lugar para ele… Começou a detestar o Ser Humano…
Não era possível tanta incompreensão, tanta intolerância, tanto desrespeito…
O que Nuno, simplesmente, tentava mostrar era a sua percepção das coisas… Partilhar a sua experiência, os seus sentimentos, as suas emoções, a sua impressão da realidade…
O erro deixava de ter tanta importância. Nunca estava em causa a razão… muito pelo contrário, o que estava em causa era o oposto da razão… o Sentimento. A realidade é vista de inúmeras perspectivas… nenhuma delas está certa ou errada… Cada um de nós torna-se uma nova perspectiva! Perspectiva essa que é formada pela sensibilidade de cada um…
Nuno dava, apenas, a sua opinião. Partilhava o que sentia…
Nuno Acreditava… mas, aos poucos, ia perdendo toda a fé…
Nuno acabou por se afastar, remetendo-se à sua solidão… Para quê continuar a mostrar que os seus olhos vêm cinzento onde, realmente, está verde? Será que está?
Já sem forças e retirado desse mundo podre… Nuno respirou fundo… olhou o céu, depois as estrelas e a Lua, esperou pelo sol, ergueu-se com os pés bem vincados na terra, colheu uma flor, e um fruto… e, por fim, deitou uma lágrima… Verde… de Esperança… num futuro melhor…

quarta-feira, outubro 05, 2005

Mil vezes

Há muito tempo que não conseguia dormir…
Insónia…
Ficava desperto, na fronteira entre o dormitar e o filosofar… era então que pensava… sentia… Tudo seria tão mais fácil se eu fosse “perfeito”, se tivesse uma “agradável aparência” (N.B: “agradável = aquele que agrada, o que convence pela simpatia, postura, bons modos; “aparência” = aquele que aparenta, o que mostra o que pode não ter escondendo a sua essência).
Era mais fácil ser aceite, ter amigos, namoradas… ser alguém…
Mil vezes desejei ser o que não sou, mil vezes me arrependi.
Continuava sem conseguir dormir…
Então começava a pensar no exacto oposto… no pouco que sou… no quão distante estou desse Ser “de bom grado e aparente”…
Imaginava como seria ter uma marca no rosto, um sinal inevitável da tragédia que era a minha vida, a mutilação de uma desgraça… Talvez isso servisse para que o mundo visse o quão frágil, débil, distorcido, angustiado, contorcido, destroçado eu sou…
As horas iam passando… mil horas… infinitas… e eu lá continuava mergulhado nessa insónia mil vezes repetida ao expoente da loucura…
De repente lembrava-me que já possuía uma marca, um sinal… Esse meu sobrolho rasgado era a prova de que, afinal, eu tinha “Como” mostrar exteriormente a minha forma de ser interior… esmagado dentro de mim…
Fechei os olhos e, tentando sacudir a impressão que essa ideia me provocava nessa cicatriz “aquilizante”, esfreguei - com mil forças e determinação - o olho preguiçoso para o soninho que se avizinhava.
Derrotado pela inércia… pela ideia da evidencia… deslizei para o conforto suave da minha almofada… rolei para um lado… o lado que me dizia que o mundo acabara de acordar… que a Vida começava ali… Foi então que, por fim, adormeci… mil vezes… embalado pelo carinho de uma mão que me sopra ao ouvido… Tudo estará bem quando acordares…